(8) cartas de amor, virginia woolf e vita sackville-west
Existe algo extremamente íntimo em escrever para um outro. Principalmente uma escrita que se demora, uma escrita pensada, construída e endereçada. Ocupar parte de um dia para se dirigir a alguém. Para compartilhar, desabafar, trocar, se aproximar. A escrita de cartas potencializa essas características e sempre que eu leio compilados de cartas eu me pego com questões interessantes. Durante essa leitura, eu senti algo muito parecido com o que eu sinto quando leio os diários da Virginia ou que senti lendo as cartas da Clarice - eu deveria estar lendo isso? Como essas mulheres se sentiriam sabendo da publicação de cartas que foram endereçadas, inicialmente, de Virginia à Vita e Vita à Virginia. A sensação é de estar, de certa forma, invadindo uma privacidade e ao mesmo tempo uma curiosidade frente essas duas figuras e a sua relação.
A minha curiosidade de ler as cartas de Virginia e Vita surge há muitos anos com a minha primeira leitura de Orlando, livro escrito por Virginia e inspirado por e dedicado à Vita. Orlando é um dos meus livros favoritos e a minha releitura em 2022 reacendeu meu desejo por saber um pouco mais a história da relação dessas duas mulheres. Era bastante difícil de ter acesso ao livro na versão original das cartas e o preço da importação bastante caro, mas em 2023 a editora Morro Branco publica a edição brasileira do livro e esse ano eu finalmente leio. E de forma bastante direta: foi uma grande e incrível leitura.
A leitura de cartas não condiz com uma reflexão da mesma forma que sobre um livro ficcional ou até mesmo não ficcional, justamente porque a escrita das cartas não se ocupa em pensar uma narrativa. A construção das cartas é endereçada a uma pessoa apenas e nós, enquanto leitores em um tempo depois, ganhamos um acesso especial ao poder conhecer um pouco mais essas mulheres e os anos nos quais elas foram amigas, amantes e confidentes. Existe uma certa linearidade temporal e conseguimos acompanhar os movimentos de ambas, a construção e desenvolvimento da relação, porém, também temos espaços de tempo sem cartas e um desconhecimento frente aos momentos nos quais elas de fato se encontravam e o vivido era então, vivido e não narrado.
Mas o que eu ia dizer é implorar por mais ilusões. Garanto a você, se você me inventar, invento você (Carta de Virginia a Vita, p. 48)
A correspondência entre Virginia e Vita se inicia em 1922 e se encerra em 1941, com o suicídio de Virginia. Existe todo um percurso entre as cartas que se iniciam com “Cara sra. Nicolson” e “Cara sra Woolf” para cartas que contemplam apelidos, piadas internas, confidências e provocações. Além das cartas, achei interessante que a edição traz entradas de diários tanto de Virginia quanto de Vita, bem como cartas de Vita ao seu marido Harold, ampliando o contexto dos diálogos mantidos entre ambas e auxiliando o leitor a construir um panorama da época, das relações familiares, dos trabalhos e dos círculos sociais que ambas frequentavam.
Estou reduzida a uma coisa que deseja Virginia. Elaborei uma linda carta para você nas horas insones de pesadelo da madrugada, e ela se desvaneceu por completo: apenas sinto sua falta, de um jeito humano e desesperado bastante simples (Carta de Vita a Virginia, p. 65)
A leitura das cartas introduz também um outro olhar para a figura Virginia Woolf. Indica uma dimensão da pessoa Virginia que amplia a dimensão conhecida da escritora Virginia. A pessoa Virginia por vezes é muito engraçada, a pessoa Virginia sente ciúmes e sente inveja, a pessoa Virginia reflete sobre o ato de escrever e sobre a construção dos seus romances de forma profunda. A pessoa Virginia é uma pessoa complexa e de muitas camadas, por meio das suas cartas, o leitor consegue acessá-la um pouco mais. Eu gosto muito de ler as reflexões de escritores que admiro sobre o ato de escrever e muitas das trocas entre Virginia e Vita tem essa temática. As dificuldades da escrita, os momentos de construção de uma nova ideia, os momentos de receber as primeiras críticas após uma nova publicação. É perceptível o quanto a escrita ocupava Virginia e o quanto esse ofício era estruturante na sua vida.
Um maior acesso aos bastidores da escrita de Orlando também é muito legal de acompanhar. Desde a escrita em diários sobre a ideia, até a comunicação à Vita sobre utilizá-la como inspiração para a figura de Orlando, as repercussões da leitura do livro por Vita após a sua publicação. Orlando é um livro incrível mesmo quando não se tem acesso as informações desses bastidores (a primeira vez que eu realizei a leitura eu desconhecia todo o contexto de relação entre Virginia e Vita), mas confesso que entender um pouco mais é muito muito interessante.
Meu Deus, Virginia, se alguma vez fiquei emocionada e aterrorizada, foi com a perspectiva de ser projetada na forma de Orlando. Que divertido para você; e que divertido para mim. Veja, qualquer vingança que você queira levar a cabo estará inteiramente nas suas mãos. Sim, vá em frente, jogue a panqueca para o alto, deixe-a bem douradinha dos dois lados, derrame o conhaque e sirva quente. Você tem minha total permissão. Apenas acho que tendo me esboçado e esquartejado, me desentrelaçado e retorcido, ou o que quer que seja que pretenda fazer, você deveria dedicar isso à sua vítima (Carta de Vita a Virginia, p. 160)
A questão agora é, meus sentimentos por você serão transformados? Vivi com você todos esses meses - emergindo, como você realmente é? Você existe? Inventei você? (Carta de Virginia para Vita, p. 178)
Outra dimensão interessante conhecida a partir das cartas é, de fato, todo o sistema de comunicação da época. O costume atual de uma comunicação rápida e acessível é confrontado com cartas que demoram para chegar ou se perdem pelo correio. O ato de escrita como um ato que ocupa um certo tempo em um dia e requer um movimento intencional de sentar, escrever, envelopar e levar ao correio para ser enviada. Os planos de encontro que eram feitos e a forma como eram feitos. As viagens realizadas por Vita e por Virginia e como a comunicação era mantida mesmo em países e continentes diferentes. É um olhar tanto para a relação dessas mulheres quanto para a época na qual elas viveram. Os anos finais da correspondência tão intensamente atravessados pela Segunda Guerra Mundial e seus impactos no dia-a-dia da população, seja com racionamento de gasolina, comida ou as interrupções do cotidiano por bombardeios e sinais de alerta.
Sim sim sim eu gosto de você. Tenho medo de escrever a palavra mais forte (Carta de Virginia a Vita, p. 121)
Acho interessante que em um momento do livro os editores apontam que de determinado ano, apenas poucas cartas foram localizadas, principalmente nos últimos anos de correspondência. Ou seja, o que temos acesso hoje são fragmentos, restos e recortes de uma relação que nunca será apreendida por completo. Temos acesso a uma fresta, mas, se tratando de Virginia e Vita, a fresta que temos acesso é o suficiente para nos colocar em uma proximidade com elas. Uma intimidade do cotidiano, talvez seja uma das mais intensas formas de ser íntimo de alguém - partilhar os dias comuns. É isso que temos acesso nessas cartas, a intimidade do cotidiano dessas duas mulheres.
Até a próxima!
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