(1) paixão simples, annie ernaux
começar o ano com uma leitura cinco estrelas é sempre um bom sinal
Existe uma simplicidade na complexidade do ato de se apaixonar. Também, existe uma simplicidade na temática narrada por Annie Ernaux em “Paixão Simples”, temática já abordada em inúmeras outras narrativas, de múltiplas formas. Esses elementos podem conferir o “simples” como adjetivo dessa paixão, contudo, a narrativa de Ernaux complexifica tanto o apaixonar-se quanto o ato de narrar uma paixão. A autora convoca o leitor a acompanhá-la na simples ação de apaixonar-se por alguém. No caso, o encontro de Ernaux já divorciada com filhos crescidos e um homem casado.
A simplicidade, banalidade, do ato de se apaixonar convoca o leitor a costurar, junto às experiências narradas por Ernaux, suas próprias experiências. A simplicidade do ato traz uma facilidade de identificação. Quem nunca viveu uma paixão? Quem nunca se encontrou obsessivamente esperando uma ligação, uma mensagem ou um sinal de fumaça. Quem nunca organizou um dia, uma semana ou um mês frente à disponibilidade deste outro. Quem nunca se viu submerso em uma irracionalidade total que apenas o estar apaixonada traz. Quem nunca viveu algo tão intensamente que quando termina se vê sem rumo? Esse estado de disponibilidade para o outro permanente é um traço intenso na narrativa, junto da percepção de que a paixão “contamina” todos os pensamentos, cenários, tarefas e atividades do cotidiano.
Em determinado momento a autora escreve sobre ela e este homem não terem a mesma língua materna e os efeitos desses entraves na comunicação. Ela traz que esses entraves operariam de forma a não permitir uma queda na ilusão de uma comunicação perfeita ou fusão entre os dois. Fiquei pensando o quanto essa diferença de línguas denuncia uma inerente diferença entre os sujeitos, que sempre existe, mas uma que muitas vezes quando estamos em estado de apaixonamento, ignoramos.
Eu tivera o privilégio de viver desde o começo, de modo constante e em plena consciência, aquilo que depois sempre acabamos descobrindo, imersos em estupor e angústia: que o homem que amamos é um completo estranho (p. 27)
A minha leitura entendeu esse livro como tendo dois caminhos de reflexão: a paixão e a escrita. A escrita da paixão, sobre a paixão, por causa da paixão. E a temática da escrita, sendo uma muito especial para mim, contempla os meus trechos favoritos. A escrita se mostra ocupando lugares distintos no processo de se apaixonar. Um escrever para não deixar ir, um escrever para seguir vivendo algo que já teve seu fim, um escrever como forma de (tentar) escrever e um escrever como registro do vivido e das emoções suscitadas.
O tempo da escrita não tem nada a ver com o tempo da paixão. Mas, quando comecei a escrever, meu objetivo era permanecer naquele tempo, em que tudo ia no mesmo sentido, da escolha de um filme à de um batom, na direção de uma pessoa. O tempo verbal no imperfeito, que usei espontaneamente desde as primeiras linhas, representa uma duração que eu não queria que terminasse (…) Era também uma forma de produzir uma dor que substituísse a espera de antes, pelos telefonemas e pelos encontros (Ainda agora reler as primeiras páginas é uma coisa de natureza tão dolorosa quanto olhar e tocar o roupão felpudo que ele usava na minha casa e tirava no momento de se vestir para ir embora. A diferença: essas páginas terão sempre um sentido para mim, talvez para os outros também, enquanto o roupão - que já agora é algo que só faz sentido para mim - um dia não vai significar mais nada e irá parar numa sacola de roupas velhas. Ao escrever isto, estou tentando salvar o roupão também (p. 47-48)
Junto a esse trecho acima, eu escrevi na margem: um movimento de encapsular a dor na escrita; que a escrita comporte e contenha a dor sentida. Escrever é deixar esse sujeito (razão da paixão) viver para sempre. É se demorar um pouco mais nas memórias e alongar o esquecimento.
Ernaux também convoca o leitor a pensar sobre os limites e possibilidades de uma narrativa autobiográfica e dos efeitos (para a autora, pessoas envolvidas e leitores) do ato de transformar uma vivência em narrativa. O ato de publicar como extremamente distinto do ato de escrever e como, muitas vezes, é necessário um espaço de tempo entre. Entre viver e escrever. Entre escrever e publicar. Esse espaço permite uma narrativa autobiográfica ganhe distância do real vivido e possa se transformar. Entendo que cada leitor ao se encontrar com “Paixão Simples” transforma um pouco mais o vivido real por Ernaux para aquilo que é possível, cada um, escutar nas suas palavras.
O ato de se apaixonar, em sua simples complexidade, é um que rende muito. Rende histórias, narrativas e construções desde muito tempo e com certeza ainda por muito tempo. Observo ser um ato que convoca uma escrita, por sua intensidade. É um ato, também, que caminha entre os polos: obsessivamente esperar uma ligação e ter todos os segundos de um dia ocupados por pensamentos referentes a uma pessoa até um outro momento no qual, muitas vezes imperceptivelmente, é possível se desprender, esquecer e seguir em frente.
O conjunto de signos que constituem o romance não escrito de uma paixão começa a se desfazer. Este texto aqui é apenas o resíduo, um mínimo vestígio, daquele outro texto vivo. Assim como o outro, um dia este aqui não significará nada para mim (p. 53-54)
“Paixão Simples” é o segundo livro da autora que eu leio e faz com que o desejo de seguir adentrando a sua obra só aumente. Uma ótima forma de começar o ano de leituras e também, inaugurar esse espaço aqui. Como sempre, vamos conversar sobre, caso já tenha lido ou tenha ficado com vontade de ler!
Até a próxima!
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ler Ernaux me parece uma aventura sem volta hehehe ela tá na minha lista de 2024 <3